As problemáticas socioambientais e sociopolíticas do Centro-Oeste brasileiro ocupam as três salas do segundo andar da Pinacoteca Luz, com a mostra “Como é bom viver em Mato Grosso” do cuiabano Gervane de Paula. Sob a curadoria de Thierry Freitas, 58 obras pontuam os mais de 40 anos da carreira desse artista ativista e multifacetado. São fotografias, pinturas, esculturas e instalações que traduzem a potência de um criador em constante ebulição. A mostra segue em cartaz até 1 de setembro.
Suas primeiras telas, realizadas entre os anos de 1976 a 1980, parte delas exibidas nessa individual, fixam imagens de um Mato Grosso recém-dividido. Thierry observa: “O artista nos apresenta sensíveis interpretações da paisagem cuiabana: o Bairro do Araés – local onde o artista nasceu e reside ainda hoje -, com suas ladeiras ensolaradas e sua população multiétnica, está representado em cenas de convívio e festa. Há diversas cenas com mangueiras e cajueiros, árvores muito comuns nessas ruas naquela época. Não escapa, também, o registro social da economia local. São frequentes as cenas de pesca e de mineração, mas, principalmente, as cenas nas quais o gado aparece em profusão, já evidenciando a potência motriz que o agronegócio viria a tomar nos anos seguintes.”
Em uma clara demonstração das imbricadas relações entre humanos e bichos na região, destaca-se As filhas do fazendeiro, uma tela em que dois jacarés figuram sobre a cama e, ao fundo, duas moças observam atordoadas. “Como é bom viver em Mato Grosso” reflete o aspecto crítico e o humor corrosivo de Gervane que, inspirado no artista canadense-americano Philip Guston (Montreal, CA, 1913 – Nova York, EUA, 1980) cujas obras teve contato na 16ª Bienal de São Paulo, em 1981, usa, em algumas de suas criações, as figuras supremacistas da Ku Klux Klan, colocando-as num passeio de carro ao Pantanal mato-grossense.
O artista destaca a relevância da mostra. “Essa exposição é uma das mais importantes da minha trajetória artística, talvez a mais importante até o momento. Porque é uma mostra individual abrigada em uma das instituições culturais mais importantes do Brasil, a Pinacoteca de São Paulo. Segundo, porque a mostra reúne obras de períodos diversos, algumas inéditas, jamais exibidas ao público, compreendendo desde o início da minha carreira artística até a atualidade. Um momento especial, que permite um breve balanço de quatro décadas de intenso trabalho dedicado à arte.”
Integrante da mostra “Como vai você, Geração 80?”, um marco no cenário das artes no país que aconteceu no Parque Lage no Jardim Botânico, Rio de Janeiro, em 1984, Gervane, como relata o curador Thierry Freitas em seu texto, “evidenciou um importante marcador de raça: ele foi um dos únicos artistas autodeclarados negros entre os 123 participantes.” Um caminho sem volta para de Paula que passou a realizar uma série de trabalhos questionadores dos paradigmas das artes no Brasil. É nesse período que surge outra obra que compõe a mostra na Pina Luz. A partir de uma pequena foto de Leda Catunda, publicada em edição da revista Veja, em 1985, Gervane pinta a artista com certa visualidade gráfica e em grandes dimensões. A consonância desse trabalho com algumas criações dos artistas dessa geração, confirma não só a influência do grupo, mas atesta sua conexão a ele.
As mensagens, mesmo que às vezes veladas, são o ponto alto e forte dos trabalhos de Gervane, que introduz uma necessária dose de ironia, atrelada a assuntos, muitas vezes urgentes, que atravessam o cotidiano. São corriqueiras cenas de pesca, mas também frequentes a crônica policial, os desmatamentos e as queimadas que assolam sua terra natal, maltratando e destruindo flora e fauna. Uma das obras que retrata essa contundente realidade e traz para o espectador uma confluência de sentimentos, que pode variar entre angústia, raiva e tristeza, além da clara referência à exploração predatória, é Arte aqui eu mato, na qual pinta um caçador carregando de um lado do ombro uma onça abatida e exibindo, no outro, sua espingarda.
Residindo longe dos grandes centros urbanos, Gervane de Paula não se omite do debate dos grandes temas da atualidade, que interessam aos homens e à natureza do planeta ameaçado. Sua arte, de cores vivas e suportes improváveis, é um libelo pela vida, pela civilização contra a barbárie. Gervane de Paula é artista apoiado pelo MT Projetos de Artes/RJ, que o representa com exclusividade.
SERVIÇO
Exposição: Como é bom viver em Mato Grosso
Pinacoteca Luz (2º andar)
Período expositivo: de 23 de março de 2024 até 1 de setembro de 2024
Endereço: Praça da Luz, 2, São Paulo — SP.
Horário de funcionamento: de quarta a segunda, das 10h às 18h. Quintas-feiras com horário estendido na Pina Luz, das 10h às 20h (gratuito a partir das 18h).